Foi na ditadura militar que fuzis começaram a ser desviados para o tráfico

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Entre os vários mitos sobre a ditadura militar, um dos mais resistentes é que nesse período a criminalidade no Brasil esteve sob controle. Segundo tal lenda, os 21 anos de chumbo foram um período de paz, em que os cidadãos de bem podiam circular pelas cidades sem se preocupar com roubos ou ataques de quadrilhas de traficantes.

Nada mais falso.

Deu-se justamente o contrário: foi durante a ditadura que as quadrilhas de traficantes dos morros do Rio de Janeiro, até então munidas exclusivamente de revólveres e pistolas, passaram a contar com armamentos pesados em seus arsenais. Muitas dessas armas longas que o tráfico adotou são os fuzis automáticos leves (FAL), de uso exclusivo das forças Armadas.

O período de tempo em que se deu esse upgrade no armamento dos criminosos é facilmente verificável. Uma consulta aos jornais do início da década de 1960 até meados de 1970 confirma que as armas em poder dos bandidos eram de pequeno calibre. Foi no fim da década de 1970, com o regime militar no auge, que homens armados de fuzis começaram a aparecer como protagonistas no noticiário policial.

Não se tratou apenas de uma simples mudança no tipo de instrumento usado pelo crime. Foram as armas longas que permitiram o surgimento dos feudos do tráfico em muitas favelas cariocas. Com a possibilidade de criminosos dispararem tiros de longo alcance, o trabalho repressivo da polícia ficou mais difícil. Com os dois lados armados de fuzis, cada operação passou a ser encarada como uma batalha, para desespero dos milhares de moradores de comunidades pobres que ficam em meio ao fogo cruzado.

O modelo de domínio territorial do tráfico surgido no Rio foi, anos depois, exportado para outros estados. A base dessa estratégia criminosa são as metralhadoras e os fuzis, muitos deles de uso exclusivo das Forças Armadas.

Ficou famoso um trecho do programa Roda Viva de 1989 em que um jornalista pergunta ao ex-governador Leonel Brizola sobre a escalada da criminalidade no estado que o pedetista havia comandado por dois mandatos. Brizola sacou, então, um exemplar da revista Veja de 1981, em que a reportagem de capa tinha o título “Guerra civil no Rio.

“Sabe de quando é esta revista? De um ano antes de Leonel Brizola assumir”, destacou o político, que costumava se referir a si mesmo na terceira pessoa.

extensa reportagem, Veja relatava como o crescimento do tráfico e a disputa entre facções marginais tornou dramática a rotina da população fluminense desde os últimos anos da década de 1970 até 1981. A Ditadura só terminaria em 1985.

O texto apresentava uma pesquisa do Instituto Gallup, com a constatação de que mais de um milhão de moradores do Rio tiveram seu patrimônio “parcialmente mutilado por homens armados” nos anos de 1979 e 1980. Revelava também o crescimento da procura por empresas de segurança particular e relatava inúmeros crimes praticados na Baixada Fluminense com metralhadoras e escopetas

“Comércio clandestino de armas bate recorde no Rio de Janeiro”, informava uma das chamadas de capa.

É importante lembrar também que a mais poderosa facção de traficantes do Rio, o Comando Vermelho, foi criada em 1979, justamente nessa suposta era de paz e segurança vivida pelos moradores do estado.

Ainda faltam estudos mais aprofundados para detalhar a forma como os armamentos “de uso exclusivo das Forças Armadas” saíram dos quartéis nos anos do regime militar e foram parar nas mãos de traficantes. É impossível, porém, que isso tenha acontecido sem que outro componente refutado pelos saudosos da ditadura tenha sido largamente utilizado: a corrupção.

Os fatos estão — sempre estiveram — ao alcance de quem quiser se dar ao trabalho de checar. Mas à verdade histórica, no Brasil de hoje muita gente prefere continuar acreditando no mito.

Chico Alves /Colunista do UOL 28/06/2020 15h1

Edição – Wilson Barbosa -Jornal Cidades

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornal Cidades